quarta-feira, 13 de junho de 2012

Para Casa

- Você... não está entendendo nada, não é mesmo?
- O que... quem é você?
Na verdade o garoto deveria ter perguntado "onde está você?", mas demorou um pouco para se dar conta de que não podia ver quem (ou o que) falava com ele.
- Acho que você não quer saber, acredite. Pelo menos não por enquanto.
O garoto notou que era uma voz estranha. Mais áspera e rouco que o normal. Uma voz... não exatamente humana.
Silêncio. Ele tinha medo de perguntar qualquer coisa.
Estava escuro, e ele não conseguia saber se estava deitado, sentado ou de pé, de olhos abertos ou fechados. Quando percebeu que suas costas doíam achou que devia estar deitado, e então fez um esforço para se sentar.
Tateou.
Aquilo podia ser uma rocha, mas o garoto não sabia dizer. Ele nunca tinha tocado em uma rocha de verdade antes.
Havia um som estranho e constante... um rio? Ou talvez algo menor como um córrego. Ele também não sabia dizer, nunca tinha ouvido aquilo antes, mas lembrava o correr da água da chuva nas sarjetas sujas da rua sobre o porão em que ele morava.
- Então... Tom. Quer me   falar sobre sua vida?
Como aquela voz podia saber o seu nome? O garoto quis responder a ela, mas sua garganta estava entalada, a voz não saía. Tom abriu a boca, o som não veio. Fez algum esforço a mais... e conseguiu produzir algum barulho.
- Co... co... como sabe o meu nome?
Silêncio.
- Quem é você? Que lugar é esse?!
Tom começava a se desesperar. Não sabia o que fazia ali, como tinha ido parar ali.
- Não quer mesmo me contar sua história, Tommy?
- Não me chame assim!
O garoto não suportava que o chamassem daquele jeito. Apenas uma pessoa o chamava daquele jeito, e ele não queria lembrar dela.
- Se sabe o meu nome, com certeza sabe minha vida.
- Pode apostar que sim. Mas mesmo assim, não faço ideia sobre o que se passa aí dentro.
A voz rouca pareceu estar mais próxima dessa vez, mas Tom não tinha ouvido passos. Estava acostumado com o escuro, não tinha medo das sombras. Mas também não simpatizava com vozes desconhecidas que se aproximavam sem que ele percebesse.
- Diga-me, Tom. Como se sentiu todos esses anos?
O garoto chegava à conclusão de que se não contasse não poderia se livrar daquela situação. A sensação de que estava preso numa caverna escura e úmida (não que ele realmente soubesse como era uma caverna por dentro ou por fora) causava nele certa ânsia, nervosismo. Ele queria sair dali.
- O que acontece se eu te contar?
- Se me contar eu te mostro como sair daqui.
Era uma oferta tentadora, mas Tom ainda não tinha certeza. Pensou bem, viu suas opções.
Chegou à conclusão de que não eram muitas.
- Eu... eu vivia com meus pais, sabe? Numa casa de campo. Havia muita mata e animais... e cavernas.
- Já esteve em uma caverna?
- Não... nunca. Meu pai dizia que um dia me levaria para visitar uma. Mas eu... ele...
- Ele morreu.
Silêncio.
- É. Ele morreu.
Silêncio.
Tom não sabia se queria continuar. De repente sentiu um doloroso nó na garganta, e então percebeu que algo dentro dele queria sair. Como se agora ele fosse chorar tudo o que nunca tinha chorado antes.
- Não vai continuar? E sua mãe.
- Você sabe.
Essa resposta saiu quase muda, com uma voz meio esganiçada e meio engasgada, cheia de revolta, ódio. Porque tinha alguém se metendo em sua vida logo agora? Porque tinham que vir desenterrar tudo aquilo que estava tão bem guardado, escondido, abafado e soterrado no fundo de sua alma?
- Quero ouvir de você.
Tom suspirou, sentiu os olhos lacrimejarem.
- Ela morreu antes do papai. Na verdade... não sei, acho que tinha algo a ver com uma doença transmitida por algum bicho... não tenho certeza, eu era muito criança. E aí... bem, meu pai ficou desolado. Mesmo assim me ensinou a ler, a escola era muito longe para ele me levar até lá. E depois... bom, na verdade ele decidiu se mudar para a cidade.
- A é? Por que?
- Aquela casa lembrava muito a minha mãe... acho que meu pai não suportou ficar ali sem ter ela por perto. Então fomos para a cidade.
- E como era lá?
- Não sei.
- Como assim não sabe?
- Eu quase nunca saí de casa. Assim que nos mudamos eu e meu pai descobrimos o porão. Tinha um monte de coisas legais lá, coisas do antigo morador. E... um montão de livros, uma luminária e um monte de lâmpadas reserva.
- Então... você passou sua vida inteira no porão.
Silêncio.
Não era uma pergunta. E a afirmação era corretíssima, Tom sabia que estava.
- Não eram esses os planos... não era pra ser assim. É que... estava no meio das férias e eu ia começar as aulas em pouco tempo. A casa era gigantesca, não sei porque meu pai comprou-a só pra nós dois. Acho que ele queria... sei lá. Talvez ele quisesse se afogar naquele espaço para ver se esquecia a minha mãe. Ou para ter a sensação de que ela podia estar em qualquer um dos quartos... e pudesse aparecer a qualquer momento.
Silêncio. Dessa vez mais deprimido que os anteriores. Aquele som constante de água correndo martelando na cabeça do menino Tom.
- E vocês se mudaram... sem você conhecer uma caverna?
- Pois é. Papai me prometeu que me levaria em uma nas próximas férias, mas...
- Não houve próximas férias.
- Pois é.
- E... como foi a morte dele?
A voz parecia ter se aproximado um pouco mais. Tom sentiu um arrepio percorrendo-lhe toda a espinha.
- Como eu disse, faltavam poucas semana para o começo das minhas aulas, então eu queria explorar aquela casa gigantesca. Era bem maior que a casa de campo em que a gente vivia... e a parte mais legal era o porão. Eu e papai fizemos dele o nosso esconderijo secreto, um quartel general. Cada dia a gente procurava um livro novo e ele me ajudava a ler.
- E... é verdade que você nunca viu uma rocha antes?
- O máximo que já vi foram pedras pequenas, mas nunca uma rocha dessas de caverna. Eu sempre quis visitar uma caverna...
- Porque seu pai nunca te levou em uma?
- Quando a gente morava no campo mamãe tinha medo. Ela ia com meu pai explorar as cavernas, mas não queria me levar lá pra dentro, parece que era meio perigoso. Mas eles sempre me contavam como era lá dentro, e tudo o que eles descreviam só me fazia ter ainda mais vontade de ir em uma. Então, um dia eu pedi para eles me levarem em uma, como presente de aniversário de dez anos.
- E...?
Por algum motivo estranho Tom começava a se sentir mais confortável ao falar com a voz estranha. Cada vez menos ela parecia rouca e animalizada. Na verdade, começava agora a ter um caráter mais macio, aveludado, mas sem deixar de ser monstruosa.
- Pare de ser sonso, você sabe muito bem porque eles não o levaram às cavernas naquele aniversário.
Essa era uma voz nova, feminina, isso é, se é que era possível que uma voz monstruosa fosse dividida em masculina e feminina.
- O que? Quem... quem está aí?
Tom começou a ficar nervoso novamente. Havia outra criatura estranha próxima dele, e isso não era bom, não era confortável.
- Não se preocupe, Tom, ela não vai te fazer mal, só quer ouvir sua história, assim como eu.
Era a primeira voz confirmando que realmente era "ela", o que não necessariamente deixava o garoto mais confortável.
- Eu só quero... sair daqui. Ir embora.
- Termine contar como terminaram as férias, Tom. Aposto que vai se sentir muito aliviado depois de desabafar.
A voz feminina parecia querer ouvir o resto da história. Tom não sabia como desabafar com criaturas estranhas o faria sentir-se aliviado, mas queria se livrar logo daquilo.
- Vocês sabem o que aconteceu naquele aniversário. Uma semana antes minha mãe ficou doente, e aí ela... foi tão rápido... em três dias...
Ele não conseguiu continuar. Pela primeira vez em anos uma lágrima escorreu pela morte da mãe. Ele nunca tinha chorado por ela, e no fundo se sentia culpado por isso. Sempre que via seu pai em prantos de saudade, achava que devia ser forte, firme, sóbrio para ampará-lo, mas agora começava a achar que a melhor forma de consolá-lo era chorar junto com ele.
Mas agora era tarde para isso.
- Ficamos naquela  casa por mais dois anos, mas meu pai ainda estava abatido demais para me levar a qualquer lugar, muito menos às cavernas, que lembravam tanto minha mãe.
Tom tentou não perder o fio da conversa ao mesmo tempo que secava as lágrimas.
- E então... depois desse tempo ele decidiu que deveríamos nos mudar para a cidade.
- E foi assim que você foi parar na porão?
Perguntou a voz feminina, que de repente estava não mais animalesca, mas humana, ainda rouca, mas ainda assim humana.
- É, basicamente sim.
Mas o que Tom realmente queria perguntar era porque as vozes daqueles dois mudavam a cada frase que trocavam com ele.
- E depois... quando você já estava finalizando as férias lendo com seu pai...
A voz masculina veio, pedindo para que ele continuasse. Dessa vez, parecia até familiar.
- Foi aí que um dia ele pegou uma espécie de resfriado. Foi ficando fraco... cada vez mais fraco. Ficou de cama. Eu... eu não fui para a escola, fiquei cuidando dele. Os vizinhos vinham de vez em quando, e o médico, com comida e remédios. Mas mesmo assim... a febre ia aumentando... e aí... bom, vocês sabem...
Esse último "sabem" quase não saiu. O nó na garganta se apertou mais ainda, mas dessa vez as lágrimas vieram à tona, todas de uma vez.
O garoto não precisou que as vozes lhe pedissem para continuar. Dessa vez, sentia necessidade de contar tudo até o final. Esperou que as lágrimas cessassem, tomou fôlego e seguiu.
- Depois que ele se foi eu desci até o porão com o que havia de comida na despensa. E fiquei por lá, lendo e lembrando... levei algumas fotos. Não sei quanto tempo fiquei por lá. Parece que foi ontem, ou há uma semana, ou há dez anos. Tanto faz o tempo. Mas não deve ter sido muito tempo, a comida não teria durado tanto.
- Você não saiu mais do porão?
A voz feminina pareceu se aproximar apressadamente enquanto falava, quase alarmada.
- Não tive vontade, fiquei por lá. Eu quase não comia, então a comida demorava para acabar, eu não precisava subir. Eu sei que se pedisse ajuda para os vizinhos eles me levariam para algum lugar, mas não valia a pena, eu estava aconchegado demais ali. Tinha um sofá com uma manta em que eu me deitava, me cobria e lia sem parar.
Silêncio. Dessa vez, porque não havia mais o que dizer.
- Você não se lembra do que aconteceu depois?
A voz feminina, dessa vez doce, musical, realmente próxima, preocupada e familiar perguntou tão perto que Tom teve a impressão de ouvir uma respiração.
- Acho que... talvez... acho que peguei uma gripe.
Ele não tinha certeza do que estava dizendo, tudo ficou meio nebuloso, não podia se lembrar do que aconteceu depois dessa gripe. Ele havia se deitado, dormido um pouco... mas depois sentiu-se fraco... não se lembrava de ter comido ou bebido, ou mesmo lido qualquer coisa depois disso. Se lembrava de cada vez dormir mais, cada vez mais fraco.
- Acho que já é o suficiente. Vamos levá-lo.
A voz masculina era definitivamente conhecida dessa vez. Talvez... não, seria possível?
- Sim, querido, já está na hora.
A voz doce e musical concordou, e uma forte luz branca iluminou tudo de repente, cegando Tom. Ele piscou várias vezes, mas sua visão estava bloqueada por manchas pretas e brancas. Aos poucos, tudo foi ficando menos nebuloso, até que ele pareceu vislumbrar um rosto. Um rosto de mulher, bem ali, não altura do seu próprio.
Era... gentil, familiar, conhecido. E um homem se aproximou e se agachou ao lado da mulher. Havia uma barba por fazer, um sorriso radiante.
Ele os conhecia de algum lugar... não se lembrava bem de onde.
Os dois ficaram de pé e a mulher lhe estendeu a mão. Tom não estava certo se deveria segurar ou não. Mas que opções tinha? Ele olhou em volta, mas não viu nada além do branco. Não havia uma rocha sob seu corpo, o som da água havia sumido.
Só o branco.
Tom estendeu a mão para a mulher, que o ajudou a se levantar.
O homem passou o braço sobre os ombros do garoto, a mulher, do outro lado, fez o mesmo.
Os três juntou começaram assim a andar.
- Para onde vamos?
- Para casa, sempre para casa.