terça-feira, 27 de novembro de 2012

Ao Cético

- Está vendo as estrelas lá em cima?
Lindas, não acha?
Está bem, eu sei que elas não passam de gigantescas bolas de gás em constante processo de fusão atômica, mas...
Mas...
Mesmo assim...
Não te surpreendem?
São sim as tais bolas químicas, mas são também a magia do céu noturno.
Assim como a lua.





O que? É só mais um satélite natural?





Pois eu acho um delicioso mistério as suas fases.
Ah, não são? É tudo apenas essa alteração física da iluminação dela pelo sol?
Pode ser, mas ela e as estrelas não deixam de ser as belezas que enfeitam o gigantesco manto azul.


De tão gigantesco e tão escuro ele já se sentiu muito triste e sozinho por muito tempo...

É bobagem pensar isso?
Tudo bem, então, pode dizer o que quiser, não vou te julgar por isso.

Mas eu ainda continuarei a achar todas essas estranhas coincidências fascinantes.


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Toc toc

Toc toc.
Ninguém respondeu.
Toc toc.
Ele insistiu. Sentia que não podia desistir agora, simplesmente não podia.
Toc toc.
Um desespero que costumava ser pequenininho e que ele costumava guardar o mais fundo possível e muito bem escondido de repente cresceu de uma vez, mas ele se controlou e levantou o punho mais uma vez.
Toc toc.
A lembrança do último ano lhe veio à mente. Um ano inteiro de buscas, de pesquisas... E agora lá estava ele, segurando a carta, esperando para saber se o destinatário estava lá, para entregá-la pessoalmente...
Toc toc.
Um segundo de silêncio. Ele ou viu algum tipo de "clique" vindo lá de dentro, um rangido de porta se abrindo. Passos, uma lâmpada de ascendeu lá dentro. A maçaneta girou parcialmente, depois parou, como se a pessoa do outro lado tivesse hesitado.
A brisa soprou de leve, como se quisesse acalmá-lo, mas na verdade acabou provocando calafrios terríveis.
E se ela não atendesse? E se dissesse "vai embora"?
O olho de vidro era fincado na porta como um invasor, e naquele momento encarava-o com austeridade, sério, frio. Sua autoridade de julgamento submetia-o, sufocava-o, deixava-o apavorado.


E se ela não me reconhecer?
Ele sentia alguém a observá-lo do outro lado. Ela devia estar tentando descobrir quem era, afinal, haviam se passado tantos anos...
Em fim, a porta se abriu.
- O que você quer?
A idade não havia roubado dela nenhuma das belezas joviais das quais ele se lembrava. Ficou mudo, não sabia o que dizer.
Estendeu a mão com a carta.
- Você nunca foi bom com as palavras, não é? A não ser em suas teses.
Continuou calado. Ela pegou a carta.
- Eu me lembro dos seus poemas, sabe... eram razoavelmente bons. Naquela época eu costumava achá-los o máximo. Mas você nunca recitou um deles para mim, não é? Nunca me disse de onde você tirava sua inspiração. Eu não me importava.
Ela desdobrou o papel.
- Ah, então você resolveu aprender a escrever cartas, é? Já é um avanço. Tomara que não pareça uma tese de doutorado ou uma defesa de TCC. Na verdade a carta é mais próxima da fala, quem sabe você não colocou aqui um pouco do que nunca me disse no passado...
Foi quando conseguiu fazer sua voz sair.
- Me desculpe.

Ela parou de falar. Encarou-o pela primeira vez, e então ele pode ver seus olhos novamente, exatamente como os tinha visto pela última vez: na penumbra, iluminados por uma única lâmpada fraca que cintilava na escuridão de uma noite de inverno.
Eram quinze anos, um mês e quatro dias, e mesmo assim ele sentiu que o mesmo calor de outrora preenchia novamente o seu interior oco e abandonado.
Ela o olhava como se o tivesse reparado agora. Não estava mais na defensiva, parecia na verdade surpresa por suas palavras.
- Não pensei que você realmente fosse capaz de pedir desculpas a alguém - ela disse por fim.
- Por favor, Alice, me perdoe, meu amor, eu jamais devia ter feito tudo aquilo, mas era uma oportunidade... eu tinha que ir, era minha chance, podia ser a única! E na época... eu era tão jovem, tão sonhador...
- Eu também tinha um sonho, e você o destruiu quando foi embora.
- Nós dois sabemos que isso não é verdade - ele disse. - Você nunca precisou de mim pra nada, seguiu sua vida muito bem sem mim, não seguiu?
- Isso não significa que não tenha machucado.
- Sim, eu sei. Eu não deveria ter feito aquilo... nós podíamos ter encontrado uma outra solução.
- Mas agora já é tarde.
- É por isso que estou aqui.
Ela levantou os olhos novamente, esperando o que ele tinha a declarar.
- Escute - ele começou cautelosamente. - Vamos começar novamente, sim?
Ela não respondeu de imediato. Ele sabia que a ferida era profunda, e ainda doía. Pensou enxergar alguma sombra de sorriso em seu rosto antes dela olhá-lo novamente, talvez estivesse especulando as possibilidades.
- Vamos com calma, certo? Eu não tenho certeza se quero viver tudo aquilo de novo.
- Alice...
Ela voltou-se novamente para dentro da casa, puxando a porta atrás de si.
- Não vai nem me convidar para um chá? Um café? Um pedaço de bolo?
- Já se foi a época dos lanchinhos da noite, Arthur. É melhor você se acostumar com isso.
Ele segurou a porta antes que ela a fechasse. Colocou sua cabeça para dentro.
- Alice, vivemos tanta coisa juntos...
- Eu pretendo ler a carta, Arthur, vi que tem o endereço do remetente, posso te procurar se quiser.
- Mas...
- Boa noite, Arthur. Você já pode ir agora.
Ele não insistiu. Soltou a porta e deixou-a fechar. Ficou ainda alguns instantes olhando para ela, pensando em seu mais novo primeiro encontro, porque afinal, era sim um primeiro encontro, mas um encontro que não resultara no primeiro beijo.
Mas foi melhor do que eu imaginei.
Não que ele tivesse realmente imaginado alguma coisa concreta, mas tinha consciência que devido às circunstâncias podia ter sido bem pior.
Podia até não ter sido.
Bem, pelo menos agora ele sabia o endereço dela.

Contemplação

Às vezes olho para o nada, simplesmente por olhar
Às vezes, no infinito, tento buscar algo a mais
Busco o que me surpreenda
Busco uma faísca, uma repentina inspiração







De noite olho a lua
De noite olho as estrelas e o misterioso manto azul
E sinto a brisa suave em meu rosto
E tento entender como, por que... mas não consigo

Olho então para o lado, e vejo você
Olho então em seus olhos, e de repente o azul do céu não parece mais tão azul
Percebo que toda a inspiração está ali
Percebo que não há o que entender, apenas o que contemplar






segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Limões

Foi assim que ele me convenceu a vender limões.
Quer dizer: distribuí-los.
- O que? Você quer mesmo...?
- É claro que sim!
- Mas... de onde tirou essa ideia?
- É uma experiência sociológica, vamos, vai ser legal.
Eu dei risada, pensei um pouco.
É, talvez fosse legal. Talvez.
- O que você quer provar?
- Quem disse que quero provar algo? Só quero ver a reação das pessoas. Vai ser divertido.
Parecia interessante. Era o tipo de coisa que todo mundo têm vontade de fazer, mas quase ninguém faz.
Eu, inclusive.
Ah, essas coisas loucas! Adoro as coisas loucas, sempre adorei. E estava na hora de um ato um pouco desajustado, fazia tempo que eu não fazia nada desajustado.
Como daquela vez em que eu subi em uma fonte no meio de uma praça e gritei que era dona do mundo para uma avenida de carros insensíveis.
Bom, aquilo já fazia um bom tempo. Já era hora de construir novas lembranças sobre atos malucos.
- Então... de quantos limões vamos precisar?
- Uns dez.
- Está certo então.
- E vamos precisar de papel e caneta.
- Pra quê? Vamos escrever "vende-se limões"?
- Não, vamos escrever "VIDA" e colar em nossas camisetas.
Só naquele momento eu realmente percebi o que ele queria fazer. E aí eu entendi porquê ia ser tão legal.
E lá fomos nós vender limões.

"Vender não!" ele dizia bravo. "Vamos doar limões". Mas não adiantava, eu estava com o verbo "vender" na cabeça. Por quê? Porque algum dia li em algum lugar algo sobre "vender sonhos", um ato sem remuneração mas que se autodenominava como uma venda, e era exatamente o que estávamos fazendo. O limão era uma metáfora para o sonho, ou, melhor se encaixando no ditado: para a oportunidade.
E acabamos com os dez limões em dez minutos.
Certo então, tínhamos terminado. Então nos sentamos e ficamos observando o céu, lembrando daqueles estranhos personagens que tinham aceitado nosso estranho presente. Alguma expressão triste que de repente se transformou num sorriso, alguém que queria fazer uma caipirinha, alguém que realmente não esperava por isso e que, chegando em casa com certeza diria a alguém: "a vida hoje me deu um limão", "onde?", "no semáforo".
- Sabe o que eu acho? - perguntei.
- O que?
- Que nós mesmos somos limões.
- Ah é?
- É. Tenho certeza, eu devo ser um limão na sua vida, não?
- Depende do ponto de vista.
- Pois é.
- Eu sou um na sua?
- Depende do ponto de vista.
Ele sorriu com minha resposta.
- Bem - concluiu. - De qualquer forma, o bom de tudo isso é que podemos escolher o melhor modo de usar cada limão que recebemos.
Sorri.
- Também acho. E por enquanto, acho que estou sabendo aproveitar muito bem o meu.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Para Casa

- Você... não está entendendo nada, não é mesmo?
- O que... quem é você?
Na verdade o garoto deveria ter perguntado "onde está você?", mas demorou um pouco para se dar conta de que não podia ver quem (ou o que) falava com ele.
- Acho que você não quer saber, acredite. Pelo menos não por enquanto.
O garoto notou que era uma voz estranha. Mais áspera e rouco que o normal. Uma voz... não exatamente humana.
Silêncio. Ele tinha medo de perguntar qualquer coisa.
Estava escuro, e ele não conseguia saber se estava deitado, sentado ou de pé, de olhos abertos ou fechados. Quando percebeu que suas costas doíam achou que devia estar deitado, e então fez um esforço para se sentar.
Tateou.
Aquilo podia ser uma rocha, mas o garoto não sabia dizer. Ele nunca tinha tocado em uma rocha de verdade antes.
Havia um som estranho e constante... um rio? Ou talvez algo menor como um córrego. Ele também não sabia dizer, nunca tinha ouvido aquilo antes, mas lembrava o correr da água da chuva nas sarjetas sujas da rua sobre o porão em que ele morava.
- Então... Tom. Quer me   falar sobre sua vida?
Como aquela voz podia saber o seu nome? O garoto quis responder a ela, mas sua garganta estava entalada, a voz não saía. Tom abriu a boca, o som não veio. Fez algum esforço a mais... e conseguiu produzir algum barulho.
- Co... co... como sabe o meu nome?
Silêncio.
- Quem é você? Que lugar é esse?!
Tom começava a se desesperar. Não sabia o que fazia ali, como tinha ido parar ali.
- Não quer mesmo me contar sua história, Tommy?
- Não me chame assim!
O garoto não suportava que o chamassem daquele jeito. Apenas uma pessoa o chamava daquele jeito, e ele não queria lembrar dela.
- Se sabe o meu nome, com certeza sabe minha vida.
- Pode apostar que sim. Mas mesmo assim, não faço ideia sobre o que se passa aí dentro.
A voz rouca pareceu estar mais próxima dessa vez, mas Tom não tinha ouvido passos. Estava acostumado com o escuro, não tinha medo das sombras. Mas também não simpatizava com vozes desconhecidas que se aproximavam sem que ele percebesse.
- Diga-me, Tom. Como se sentiu todos esses anos?
O garoto chegava à conclusão de que se não contasse não poderia se livrar daquela situação. A sensação de que estava preso numa caverna escura e úmida (não que ele realmente soubesse como era uma caverna por dentro ou por fora) causava nele certa ânsia, nervosismo. Ele queria sair dali.
- O que acontece se eu te contar?
- Se me contar eu te mostro como sair daqui.
Era uma oferta tentadora, mas Tom ainda não tinha certeza. Pensou bem, viu suas opções.
Chegou à conclusão de que não eram muitas.
- Eu... eu vivia com meus pais, sabe? Numa casa de campo. Havia muita mata e animais... e cavernas.
- Já esteve em uma caverna?
- Não... nunca. Meu pai dizia que um dia me levaria para visitar uma. Mas eu... ele...
- Ele morreu.
Silêncio.
- É. Ele morreu.
Silêncio.
Tom não sabia se queria continuar. De repente sentiu um doloroso nó na garganta, e então percebeu que algo dentro dele queria sair. Como se agora ele fosse chorar tudo o que nunca tinha chorado antes.
- Não vai continuar? E sua mãe.
- Você sabe.
Essa resposta saiu quase muda, com uma voz meio esganiçada e meio engasgada, cheia de revolta, ódio. Porque tinha alguém se metendo em sua vida logo agora? Porque tinham que vir desenterrar tudo aquilo que estava tão bem guardado, escondido, abafado e soterrado no fundo de sua alma?
- Quero ouvir de você.
Tom suspirou, sentiu os olhos lacrimejarem.
- Ela morreu antes do papai. Na verdade... não sei, acho que tinha algo a ver com uma doença transmitida por algum bicho... não tenho certeza, eu era muito criança. E aí... bem, meu pai ficou desolado. Mesmo assim me ensinou a ler, a escola era muito longe para ele me levar até lá. E depois... bom, na verdade ele decidiu se mudar para a cidade.
- A é? Por que?
- Aquela casa lembrava muito a minha mãe... acho que meu pai não suportou ficar ali sem ter ela por perto. Então fomos para a cidade.
- E como era lá?
- Não sei.
- Como assim não sabe?
- Eu quase nunca saí de casa. Assim que nos mudamos eu e meu pai descobrimos o porão. Tinha um monte de coisas legais lá, coisas do antigo morador. E... um montão de livros, uma luminária e um monte de lâmpadas reserva.
- Então... você passou sua vida inteira no porão.
Silêncio.
Não era uma pergunta. E a afirmação era corretíssima, Tom sabia que estava.
- Não eram esses os planos... não era pra ser assim. É que... estava no meio das férias e eu ia começar as aulas em pouco tempo. A casa era gigantesca, não sei porque meu pai comprou-a só pra nós dois. Acho que ele queria... sei lá. Talvez ele quisesse se afogar naquele espaço para ver se esquecia a minha mãe. Ou para ter a sensação de que ela podia estar em qualquer um dos quartos... e pudesse aparecer a qualquer momento.
Silêncio. Dessa vez mais deprimido que os anteriores. Aquele som constante de água correndo martelando na cabeça do menino Tom.
- E vocês se mudaram... sem você conhecer uma caverna?
- Pois é. Papai me prometeu que me levaria em uma nas próximas férias, mas...
- Não houve próximas férias.
- Pois é.
- E... como foi a morte dele?
A voz parecia ter se aproximado um pouco mais. Tom sentiu um arrepio percorrendo-lhe toda a espinha.
- Como eu disse, faltavam poucas semana para o começo das minhas aulas, então eu queria explorar aquela casa gigantesca. Era bem maior que a casa de campo em que a gente vivia... e a parte mais legal era o porão. Eu e papai fizemos dele o nosso esconderijo secreto, um quartel general. Cada dia a gente procurava um livro novo e ele me ajudava a ler.
- E... é verdade que você nunca viu uma rocha antes?
- O máximo que já vi foram pedras pequenas, mas nunca uma rocha dessas de caverna. Eu sempre quis visitar uma caverna...
- Porque seu pai nunca te levou em uma?
- Quando a gente morava no campo mamãe tinha medo. Ela ia com meu pai explorar as cavernas, mas não queria me levar lá pra dentro, parece que era meio perigoso. Mas eles sempre me contavam como era lá dentro, e tudo o que eles descreviam só me fazia ter ainda mais vontade de ir em uma. Então, um dia eu pedi para eles me levarem em uma, como presente de aniversário de dez anos.
- E...?
Por algum motivo estranho Tom começava a se sentir mais confortável ao falar com a voz estranha. Cada vez menos ela parecia rouca e animalizada. Na verdade, começava agora a ter um caráter mais macio, aveludado, mas sem deixar de ser monstruosa.
- Pare de ser sonso, você sabe muito bem porque eles não o levaram às cavernas naquele aniversário.
Essa era uma voz nova, feminina, isso é, se é que era possível que uma voz monstruosa fosse dividida em masculina e feminina.
- O que? Quem... quem está aí?
Tom começou a ficar nervoso novamente. Havia outra criatura estranha próxima dele, e isso não era bom, não era confortável.
- Não se preocupe, Tom, ela não vai te fazer mal, só quer ouvir sua história, assim como eu.
Era a primeira voz confirmando que realmente era "ela", o que não necessariamente deixava o garoto mais confortável.
- Eu só quero... sair daqui. Ir embora.
- Termine contar como terminaram as férias, Tom. Aposto que vai se sentir muito aliviado depois de desabafar.
A voz feminina parecia querer ouvir o resto da história. Tom não sabia como desabafar com criaturas estranhas o faria sentir-se aliviado, mas queria se livrar logo daquilo.
- Vocês sabem o que aconteceu naquele aniversário. Uma semana antes minha mãe ficou doente, e aí ela... foi tão rápido... em três dias...
Ele não conseguiu continuar. Pela primeira vez em anos uma lágrima escorreu pela morte da mãe. Ele nunca tinha chorado por ela, e no fundo se sentia culpado por isso. Sempre que via seu pai em prantos de saudade, achava que devia ser forte, firme, sóbrio para ampará-lo, mas agora começava a achar que a melhor forma de consolá-lo era chorar junto com ele.
Mas agora era tarde para isso.
- Ficamos naquela  casa por mais dois anos, mas meu pai ainda estava abatido demais para me levar a qualquer lugar, muito menos às cavernas, que lembravam tanto minha mãe.
Tom tentou não perder o fio da conversa ao mesmo tempo que secava as lágrimas.
- E então... depois desse tempo ele decidiu que deveríamos nos mudar para a cidade.
- E foi assim que você foi parar na porão?
Perguntou a voz feminina, que de repente estava não mais animalesca, mas humana, ainda rouca, mas ainda assim humana.
- É, basicamente sim.
Mas o que Tom realmente queria perguntar era porque as vozes daqueles dois mudavam a cada frase que trocavam com ele.
- E depois... quando você já estava finalizando as férias lendo com seu pai...
A voz masculina veio, pedindo para que ele continuasse. Dessa vez, parecia até familiar.
- Foi aí que um dia ele pegou uma espécie de resfriado. Foi ficando fraco... cada vez mais fraco. Ficou de cama. Eu... eu não fui para a escola, fiquei cuidando dele. Os vizinhos vinham de vez em quando, e o médico, com comida e remédios. Mas mesmo assim... a febre ia aumentando... e aí... bom, vocês sabem...
Esse último "sabem" quase não saiu. O nó na garganta se apertou mais ainda, mas dessa vez as lágrimas vieram à tona, todas de uma vez.
O garoto não precisou que as vozes lhe pedissem para continuar. Dessa vez, sentia necessidade de contar tudo até o final. Esperou que as lágrimas cessassem, tomou fôlego e seguiu.
- Depois que ele se foi eu desci até o porão com o que havia de comida na despensa. E fiquei por lá, lendo e lembrando... levei algumas fotos. Não sei quanto tempo fiquei por lá. Parece que foi ontem, ou há uma semana, ou há dez anos. Tanto faz o tempo. Mas não deve ter sido muito tempo, a comida não teria durado tanto.
- Você não saiu mais do porão?
A voz feminina pareceu se aproximar apressadamente enquanto falava, quase alarmada.
- Não tive vontade, fiquei por lá. Eu quase não comia, então a comida demorava para acabar, eu não precisava subir. Eu sei que se pedisse ajuda para os vizinhos eles me levariam para algum lugar, mas não valia a pena, eu estava aconchegado demais ali. Tinha um sofá com uma manta em que eu me deitava, me cobria e lia sem parar.
Silêncio. Dessa vez, porque não havia mais o que dizer.
- Você não se lembra do que aconteceu depois?
A voz feminina, dessa vez doce, musical, realmente próxima, preocupada e familiar perguntou tão perto que Tom teve a impressão de ouvir uma respiração.
- Acho que... talvez... acho que peguei uma gripe.
Ele não tinha certeza do que estava dizendo, tudo ficou meio nebuloso, não podia se lembrar do que aconteceu depois dessa gripe. Ele havia se deitado, dormido um pouco... mas depois sentiu-se fraco... não se lembrava de ter comido ou bebido, ou mesmo lido qualquer coisa depois disso. Se lembrava de cada vez dormir mais, cada vez mais fraco.
- Acho que já é o suficiente. Vamos levá-lo.
A voz masculina era definitivamente conhecida dessa vez. Talvez... não, seria possível?
- Sim, querido, já está na hora.
A voz doce e musical concordou, e uma forte luz branca iluminou tudo de repente, cegando Tom. Ele piscou várias vezes, mas sua visão estava bloqueada por manchas pretas e brancas. Aos poucos, tudo foi ficando menos nebuloso, até que ele pareceu vislumbrar um rosto. Um rosto de mulher, bem ali, não altura do seu próprio.
Era... gentil, familiar, conhecido. E um homem se aproximou e se agachou ao lado da mulher. Havia uma barba por fazer, um sorriso radiante.
Ele os conhecia de algum lugar... não se lembrava bem de onde.
Os dois ficaram de pé e a mulher lhe estendeu a mão. Tom não estava certo se deveria segurar ou não. Mas que opções tinha? Ele olhou em volta, mas não viu nada além do branco. Não havia uma rocha sob seu corpo, o som da água havia sumido.
Só o branco.
Tom estendeu a mão para a mulher, que o ajudou a se levantar.
O homem passou o braço sobre os ombros do garoto, a mulher, do outro lado, fez o mesmo.
Os três juntou começaram assim a andar.
- Para onde vamos?
- Para casa, sempre para casa.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Eu?

Eu que sou poetisa?
Eu que sou inspiração?
Eu de mim não sei nada
Quem sabe mesmo não sou eu

Quem é a flor?
Quem o espinho?
Como sabem eles se são um ou outro?
A verdade é que são um só


Capaz de machucar
Capaz de alegrar
Temendo sempre fazer o mal
Temendo sempre deslizar

E no final
A conclusão é sua
Dizer se fiz bem
Ou dizer se fiz mal

O que importa é que,
No que sei de mim
E é pouco o que sei de mim
Sei que farei o que achar melhor


Procurando esconder os espinhos 
Guarda-los seguros
E revelar somente a flor
Que mal não fará jamais


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A Caminhada

Um passo de cada vez
Um pé depois do outro
Sempre em frente

Há a opção de contornar as pessoas
Também a de ajudá-las
Ou de pisar sobre elas

Passo a passo se percorre o caminho
Um caminho que terminará quando você determinar
E que continuará se você quiser

Não há uma estrada certa a seguir
Você a levará para o lado que desejar
Direita, esquerda, voltar, seguir

Escolha a direção, a velocidade
Pode desviar dos perigos
E das oportunidades

Pode parar
Sentar
E não se levantar mais

E assim será até o fim
Talvez você desista no meio
Talvez pare porque não tem mais o que alcançar

É essa a eterna caminhada
A caminhada da existência
Da vida

domingo, 1 de janeiro de 2012

Ano Novo

E isso me lembra as pessoas que foram... e as que vieram
Todas importantes, todas inesquecíveis
Pensando em tudo que me deram
Entendo como são todas incríveis

Cada uma do seu jeito
Único, diferente
Sem precisar ser perfeito
Ensinando, aprendendo e mudando incessantemente

São pessoas que foram
E nem por isso as esqueci
Pessoas que conquistaram
Um lugar, bem aqui

Havia um menino... ele era magrinho, parecia um graveto. E baixo, menor que eu.
Mas às vezes parecia não ser tão magro... parecia ter uma cabeça enorme!
E às vezes... não parecia ser tão baixo, era muito alto.
Ele me ensinou a brincar, a pular e a correr.
Me ensinou a ouvir Cazuza... e a ler, e me incentivou a criar.
Ele acreditava em Deus... ou não?
Sempre caía no rio no caminho da coragem, mas nem por isso deixava de ser valente.
Enchia o saco com brincadeiras sem graça, e era quase um colecionador de bonés.
Adorava futebol, mas depois adorou o basquete.
Achava que Harry Potter era uma porcaria, "Só gosto a partir do quarto" ele dizia.
Um dia fizemos um campeonato de vale-tudo de inseto, prendendo várias espécies em um pote de plástico, até hoje não sei se o tatu-bolinha foi o vencedor porque era forte mesmo ou porque seu metabolismo era mais lento e por isso não morreu asfixiado como os outros.
Nós trocar figurinhas dos álbuns que colecionávamos e andar de pé sobre o trepa-trapa
Subíamos em uma árvore e passávamos dela para outra, além de subir em telhados, é claro.
Elaborávamos pequenas peças de teatro, e inventávamos novos componentes do jogo "pedra, papel, tesoura".
Um dia eu bati nele com um galho, e para me desculpar falei: "Mas era um galho fininho, não achei que fosse machucar".
Ele era o mágico... e o palhaço também.
E até agora ainda penso nele, por mais distante que esteja, pois foi inesquecível.

Havia uma menina... ela era alta e magríssima... Se bem que às vezes parecia mais gordinha ou baixinha. Não lembro bem se seu cabelo era preto, ou castanho claro, ou castanho escuro... ou loiro.
No começo não éramos tão amigas... eu achava que ela era muito mimada, mas depois descobri que isso não era bem verdade, e fizemos um clube.
Um clube de amigas para sempre... e eu sei que ele existe até hoje, pelo menos dentro de mim.
A gente tocava violino, e eu adorava o amendoim caramelado que a mãe dela fazia.
Descobri que gostava de abacaxi quando fui à casa dela.
E certa vez, jogando bingo, dei tanta sorte que todos os números que eu falava que iriam sair... saíam.
Ela desenhava... dançava... interpretava.
Todo mundo queria usar o giz especial que ela levava para a escola!
Ela foi o meu cavalo em uma das nossas brincadeiras, era tão divertido!
Era a mais divertida, engraçada... e pintora, com quadros espalhados pelas paredes do restaurante da mãe dela.

É ano novo, vida nova, dizem eles
Mas de nada adianta o novo se não tivermos no passado
Uma marca sincera daqueles
Que nos deram tanto enquanto estiveram ao nosso lado